Chegamos ao Ócio Criativo?

 

O sociólogo italiano Domenico de Masi, autor do livro “O Ócio Criativo”*, deixa bem clara a ideia que sintetiza a teoria sob a qual escreveu: “estamos caminhando em direção a uma sociedade fundada não mais no trabalho, mas no tempo vago“.

Trata-se de um período de transição, assim como já passamos da atividade física para a intelectual, da atividade de tempo repetitivo a intelectual criativo, passaremos também do trabalho-labuta, separado do tempo livre e do estudo, ao ócio criativo, no qual trabalho, estudo e jogo andam cada vez mais juntos.

Essas estratégias marcam a passagem de uma sociedade industrial a uma nova sociedade, chamada de “sociedade pós-industrial”. Estas duas “épocas“ distinguem-se por um ponto muito forte: a sociedade industrial permitiu que as pessoas agissem somente com o corpo, sem usar a mente. As linhas de produção obrigavam os operários a movimentarem mãos e pés sem expressarem-se com a mente. Já a sociedade pós-industrial oferece uma nova liberdade, a liberdade da alma. Na realidade, essa mudança não é fácil, pois estamos acostumados a desempenhar funções repetitivas como se fôssemos máquinas. É necessário um grande esforço para desenvolver uma atividade criativa, digna de um ser humano.

Se formos analisar a sociedade rural (que antecede a industrial), os camponeses utilizavam, além do corpo inteiro, um pouco mais o cérebro. Contudo, desde o início dos tempos, o trabalho é visto como um “mal necessário”; desde a infância aprendemos que o trabalho é uma fonte de sustento, não de satisfação e criatividade. Se formos analisar, essa conotação negativa está presente na divisão de tarefas de Taylor e na linha de montagem de Ford.

O século XVIII experimenta várias descobertas, como o nascimento do racionalismo, que abandona o enfoque emotivo, religioso ou fatalista; a vida torna-se mais prática, surge a escolarização e o consumo em massa. Além disso, surge a sistematização do saber iniciada pelos iluministas que, segundo o autor, depois dos gregos são os maiores cultores do “ócio criativo”.

O salto da sociedade rural para a industrial representou uma reorganização da vida como um todo, mudaram o sistema de trabalho, as formas de consumo, o papel de homens e mulheres. Surgem a estandardização, a especialização, a sincronização, a maximização e a centralização, princípios dessa sociedade.

Da mesma forma, a passagem da sociedade industrial para a pós-industrial traz consigo revoluções que afetam o modo de viver das pessoas. Antes, o tempo era o principal fator de produção; hoje, é o espaço,  visto que com o teletrabalho podemos produzir em qualquer parte. Mas essa passagem ainda está acontecendo, pois as mudanças levam um tempo para serem assimiladas e praticadas.

Hoje, com certeza vivemos em um mundo novo, onde não mudaram só alguns aspectos, mas sim todo o conjunto. Vivemos em uma sociedade pós-industrial, porém ainda não conseguimos identificar seus pontos cruciais, para sabermos se já estamos passando dessa fase pós-industrial, além de não podermos prever sua duração, pois não conhecemos seus desdobramentos.

A indústria provocou grandes mudanças; uma delas foi o modernismo, onde ocorreu a revolução nas artes e nos estilos arquitetônicos. Muitos veículos de massa, como o rádio e a TV, vieram dessas mudanças, onde este último cria o fato da aldeia global.

A TV cria a possibilidade de entrar por todas as partes, desde ricas mansões, como em grandes teatros ou até mesmo aquele camponês do Rio Grande do Sul. Portanto passamos por três etapas muito rápidas: o rádio, a televisão e a informática, que conduzem a níveis progressivos de informação e de homogeneização. Diante dessas mudanças, algumas empresas acabaram se burocratizando, o que consequentemente impediu a criatividade de seus profissionais.

Contudo o progresso tecnológico trouxe muitos aspectos positivos ao homem. Nos últimos anos, com o advento da sociedade pós-industrial, houve a passagem de uma economia de produção para uma economia de serviços. O setor terciário foi o que mais cresceu nesta época. O conceito de hierarquia também sofrerá modificações, pois não será mais baseado entre quem possui mais e quem possui menos, mas entre quem sabe usar melhor ou não sabe usar bem estes recursos. A condição primeira, neste caso, é o domínio do inglês e a capacidade de armazenar informações.

Outro conceito que surge nesta época de transição é o teletrabalho, ou seja, a possibilidade de trabalhar em casa, de estar conectado ao trabalho, aos amigos, ao mundo, independentemente do espaço e das regras. Um retorno ao lar, que a sociedade industrial aniquilara.

Na sociedade pós-industrial, o poder depende da posse dos meios de ideação (laboratórios) e de informação (comunicação de massa), enquanto que na sociedade industrial, o poder dependia da posse dos meios de produção (fábricas). Se os países que ocupam um lugar mais abaixo na hierarquia – aqueles condenados a consumir – desejam reverter essa situação, não devem tentar ascender na escala degrau por degrau, passando do consumo à produção, e sim tentar chegar diretamente ao topo. É viável tornar-se produtor de idéias, investindo na pesquisa científica, na promoção artística e na formação dos jovens.

Para De Masi, num futuro próximo, alguns países produzirão bens imateriais, outros, continuarão a fazer bens materiais. E outros países, ou grupos de indivíduos, não produzirão absolutamente nada. E se sustentarão através de novas moedas: quando pobres, a nova moeda poderá ser a quantidade de horas diante de um canal de televisão ou na internet, ou seja, a audiência. E vender audiência será perfeitamente possível ao mercado da informação. “Atualmente nós oferecemos gratuitamente nossa atenção. Esta, entretanto, é quantificada, avaliada em termos financeiros e paga por minuto pelas empresas, através de agências de publicidade, às redes televisivas onde expõem sua propaganda. Resumindo: permitimos que nos roubem”.

Outra moeda poderá ser a capacidade de transformar o tempo livre em alegria e desenvolvimento cultural, ou seja, propostas de entretenimento, cursos, etc. Como por exemplo, a transmissão do carnaval no Rio.

Ainda falando na sociedade pós-industrial, o autor identifica características básicas desse período de transição. São elas: globalização, tempo livre, intelectualização, estética, subjetividade, emotividade, androginia, feminilidade, desestruturação do tempo e do espaço e qualidade de vida.

O teletrabalho é mais uma vez abordado, salientando a possibilidade de, trabalhando em casa, economizar o tempo gasto em deslocamentos. A idéia do nômade também vem à tona. Para De Masi, aumentam as ocasiões para que se realize mudanças de moradia. Nos EUA, alguns adultos chegam a se mudar 16 vezes. Os novos nômades (diversas profissões estão incluídas) ganharão elasticidade mental, flexibilidade, prática e experiência, serão mais criativos.

Contudo, ainda continuamos dedicando muito mais tempo ao trabalho, em detrimento do lazer. Os executivos, por exemplo, que constituem uma classe de intelectuais que trabalham com a criatividade, sofrem com o fenômeno do overtime, que constitui na permanência no escritório muito mais tempo do que o estritamente necessário. Estes trabalhadores acabam por denegrir a vida social em prol da organização para qual trabalham. Por se tratar de trabalhos intelectuais, o rendimento tende a decair com o excesso de horas de trabalho, assim como a inspiração criativa em situações fora da empresa, sendo que sua vida fica subjugada a ela.

De Mais propõe uma redução drástica na jornada de trabalho, reduzindo o expediente para três horas diárias, seguido de uma semana feita de no máximo três dias úteis e três semanas de trabalho durante o mês, pois com uma redução amena os executivos acabariam ficando além do seu expediente novamente, sem alterar sua vida social. Esta redução drástica consolidaria um maior tempo para a vida familiar e social do trabalhador, e este conseguiria um rendimento muito superior em suas horas de trabalho, por não acumular stress excessivo.

Essa nova maneira de “viver” o trabalho, resulta na mudança de uma atividade cansativa  para uma atividade que pela motivação desperta o desejo de fazê-la. Se o trabalho for criativo, deve-se estar atraído e dedicado à atividade por prazer. O trabalho poderá ser prazeroso se for intelectual, inteligente, livre e se estiver unido a uma grande motivação. No trabalho intelectual, motivação é tudo.

Embora no trabalho criativo existam regras, estas são vistas como desafio.  A criatividade está ligada à capacidade de acolher e elaborar estímulos em condições como comodidade em um grupo de amigos, tempo à disposição sem angústia de prazos. É preciso desafios e não barreiras burocráticas.

Atualmente exercitamos atividades intelectuais que implicam o cansaço mental e por isto é necessário compensar com o ócio. Muito trabalho físico requer pouco repouso da mente, mas para poucas idéias é necessário muito ócio. Ócio criativo significa trabalho mental até quando estamos fisicamente parados. “Ociar” significa não pensar regras obrigatórias, não seguir a racionalidade. A matéria- prima para o cérebro produzir idéias é o ócio.

A sociedade atual deve enxergar o ócio como necessário para a produção de idéias e para o desenvolvimento da sociedade. As pessoas devem ser educadas para o ócio. Existe um ócio que provoca uma sensação de vazio e inutilidade, e existe o ócio criativo no qual a mente é muito ativa e provoca sensação de felicidade e crescimento. Por séculos, a identidade era ligada à classe que se pertencia, na sociedade industrial, o que prevalecia era a capacidade do indivíduo. Hoje, cada um faz a sua própria identidade, pois ela depende do que aprendemos, da nossa capacidade de produzir idéias, do modo de viver, do tempo livre, do estilo e da sensibilidade estética.

Durante milênios os seres humanos viveram o ócio, foi com a sociedade industrial que se introduziu a lei da eficiência baseada na relação entre o trabalho e o tempo necessário para a execução. A questão do tempo foi imposta, passou-se do tempo vivido para o tempo aturado e hoje começa a surgir a possibilidade do tempo escolhido.

O autor refere-se ao tédio com uma doença decorrente da excessiva disponibilidade de tempo  e que deve ser convertido em ócio criativo, preenchendo o tempo com ações escolhidas por vontade própria. Refere-se também ao mundo da “digitalidade” e dos “digitais”, um número crescente de pessoas que adotaram um novo modo de viver diferente da sociedade industrial. Os “digitais” identificam-se com computadores, correio eletrônico e Internet, têm perfeita sintonia com a informática. Gostam tanto do tempo livre como do trabalho. Fazem parte de um novo grupo social pertencente à cultura pós-moderna. Apesar de marginalizados pelo capitalismo,  tentam mudar o mundo com suas idéias inovadoras e são fascinados pelo desenvolvimento do homem. O autor diz pertencer a este grupo, embora cronologicamente pertença à geração anterior.

Nas idéias finais do livro, De Masi faz uma espécie de projeção do futuro da sociedade pós-industrial em relação a algumas características desta nova sociedade, seus valores essenciais e o que as pedagogias deverão adotar a fim de ensinar aos jovens como viver dentro dessa realidade.

O primeiro valor a ser destacado é a necessidade de se ensinar as próximas gerações a viver no contexto pós-industrial. O trabalho não deve mais ser ensinado como dever, mas como prazer criativo estimulante, e a ética utilitarista do período industrial deve ser substituída por um ideal de solidariedade de estímulos criativos. Em suma, é preciso educar os jovens ao não-trabalho, ou seja, as atividades ligadas ao tempo livre e à própria existência, pois mais importante que planejar, é saber replanejar numa sociedade que se altera com tanta velocidade.

Do contrário, como seria possível viver quando a expectativa de vida é muito maior devido a cura de doenças, a diminuição da poluição, etc. Além disso, a tecnologia nos proporciona bens de consumo muito mais duráveis e os trabalhos manuais e intelectuais de tipo executivo serão cada vez mais desenvolvidos por máquinas. Esta tecnologia proporcionará um nivelamento técnico dos produtos e serviços e, assim, a decisão de consumo terá mais ênfase na estética ou no refinamento. A criatividade terá importância cada vez maior, pois a sociedade pós-industrial se alimenta de invenções.

Todos estes fatores apontam para um conseqüente aumento do tempo livre também. Portanto, teremos ainda maior necessidade de aprender a aproveitá-lo. Porém, isso não acontecerá espontaneamente, é preciso formação e treinamento. E o grande ensinamento da postura de Ócio Criativo está no fato de entender que está cada vez mais difícil distinguir treinamento e formação, de trabalho e jogo. Ou seja, numa sociedade que privilegia o intelecto, toda situação é um aprendizado e pode apontar uma solução ou inovação, pois a mente trabalha independentemente da inércia corporal.

A criatividade é proposta como uma união entre o plano consciente e inconsciente com o plano racional e irracional. Isso porque, para ele, criatividade não se resume a ter idéias, mas também saber como aplicá-las.

Hoje, pelo excesso de informação, tudo é fruto de idéias coletivas. Por isso, o ensino e o estímulo à criatividade não deve ser feito em moldes individuais, tornando esse processo uma espécie de gincana de quem tem a melhor idéia primeiro. O ensino da criatividade deve estar mais voltado à identificação do perfil criativo e de parceiros adequados a cada vocação, bem como as condições em que se rende mais individualmente e em grupo.

Por fim, De Masi propõe a redução da jornada de trabalho e o aumento do teletrabalho, a fim de uma maior dedicação à família e a atividades lúdicas, culturais, etc. Mas concorda que isso pode diminuir a oferta de trabalho, daí a necessidade de uma ética não utilitarista, mas solidária. Também cabe a esta massa de desempregados saber ocupar o tempo livre de forma proveitosa. Assim, a humanidade estará caminhando para a solução do problema econômico, dando mais valor ao que tem e se desprendendo do trabalho como um dever.

As pessoas trabalham desnecessariamente demais e o ócio criativo é uma proposta que, para a nossa sociedade, é um paradigma tão difícil de aceitar quanto a industrialização o foi para a sociedade rural.

* Fonte: DE MASI, Domenico. O Ócio Criativo, Rio de Janeiro: Sextante, 2000. 

 


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